O outro lado da moeda: lugares no Brasil e no mundo que criaram o próprio dinheiro

ÉPOCA NEGÓCIOS

Como as moedas locais - e sociais - têm fortalecido comunidades, economias locais e ajudado o desenvolvimento socioeconômico de pequenas regiões.

Por: BARBARA BIGARELLI

reportagem original:  http://migre.me/jasn9



A história da economia é marcada principalmente pela evolução das moedas e das formas de pagamento. Do escambo às ligas metálicas e dos ourives à criação dos primeiros bancos, são muitas transformações – mas todas as etapas perpassam uma questão essencial e estratégica: a confiança de quem paga e daquele que recebe. É a força dessa relação que, na economia moderna, determinará a credibilidade de quem emite – e, consequentemente, do Estado. “A moeda é fiduciária. Para utilizar, as pessoas precisam acreditar que aquele crédito tem valor”, afirma o economista André Perfeito, da Gradual Investimentos. É com base nesse preceito básico que moedas locais – circulantes em paralelo às oficiais – têm estimulado economias de pequenas e médias cidades pelo mundo, fortalecido laços comunitários e se tornado uma opção à momentos de crise econômica.
Há exemplos como o da cidade inglesa que estabeleceu uma moeda para a comunidade trocar bens e serviços, e de várias comunidades brasileiras que vislumbraram na moeda local uma alternativa para a falta de bancos em suas proximidades. Todas possuem o mesmo valor que a nacional – para não afetar o sistema central, a relação precisa ser 1 para 1, explicam os economistas.
Entre as principais vantagens para a criação de uma moeda própria, estão o incentivo ao comércio local – de bens a serviços – e a valorização social e cultural da comunidade, aponta Marco Antonio Cavalcante, professor do Departamento de Economia da PUC-RJ. “As pessoas comprometem-se com aquela forma de pagamento, compram de fornecedores locais e, no fundo, utilizar a moeda é uma demonstração de apreço e valorização da comunidade”, diz.

Para os economistas, dificilmente as moedas locais irão gerar distorções no sistema financeiro nacional.  “O uso é restrito. Essas moedas não serão aceitas em contratos de crédito a longo prazo, apenas como forma pontual de pagamento ou troca de bens e serviços”, afirma Perfeito.  Estudo do banco central inglês (Bank of England), em 2013,analisou a atuação da Bristol Pounds, moeda criada em 2012 pela comunidade de Bristol.  Segundo o banco, o total de “Bristol Pounds” circulantes era equivalente a 250 mil unidades (ou libras esterlinas) – o que mostrou-se irrisório na comparação com a circulação da moeda nacional: mais de 54,2 bilhões de libras esterlinas. "Uma moeda local só poderia afetar o sistema nacional financeiro se estivesse muito difundida - o que poderia gerar um descrédito da moeda oficial. No geral, a magnitude é muito pequena para que esses riscos de estabilidade econômica sejam considerados importantes”, afirma Cavalcante.



Brasil e a economia solidária 

Segundo Cavalcante, o desenvolvimento de sistemas locais no Brasil têm dois objetivos centrais. Um é prover crédito para a pessoa que não tem acesso a bancos, a juros muito baixos e com menos entraves burocráticos. Ela ganha um microcrédito para gastar na comunidade. "Faz sentido em lugares carentes, onde as pessoas têm dificiculdade de acesso a bens e a economia não é estimulada", afirma. Em segundo lugar, há a questão de transferência de renda. 
Atualmente, há 103 bancos comunitários ativos no Brasil, ou 103 moedas locais circulando em paralelo ao real. Quem contabiliza (desde 2005) e incentiva a prática, através de editais que ajudam a estabelecer novas entidades, é a Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes-MT), órgão ligado ao Ministério do Trabalho. "Não é necessária a certificação do Banco Central porque os bancos comunitários não são um agente financeiro. São associações, que não visam lucro, e querem apenas estimular a economia local", afirma Haroldo Mendonça, coordenador de finanças da SENAES.

A circulação da moeda local segue na prática três princípios: os comerciantes aceitam utilizá-la se quiserem, há o lastro em real (o que permite que comerciantes façam câmbio com a moeda oficial) e a circulação está restrita a um território específico. Grande parte dos bancos comunitários brasileiros possui parcerias com a Caixa Econômica Federal para pagar o Bolsa Família, por exemplo. Segundo Haroldo, a grande maioria das moedas criadas traz a identidade local estampada já no nome. "O processo de criação é algo pedagógico que envolve a valorização da geografia local. Não é uma questão de marketing, é uma questão de fazer sentido para aquela comunidade".

Abaixo, contamos alguns casos de comunidades do Brasil e no mundo que acreditaram nessa ideia:

Palmeiras, bairro de Fortaleza (Ceará)

Moeda: Palmas



O primeiro banco comunitário criado no Brasil foi o Banco Palmas em 1998 com o objetivo de oferecer uma nova modelagem de instituição bancária. A sua instalação possibilitou levar microcrédito e serviços financeiros ao conjunto habitacional de Palmeiras, em Fortaleza, que, em 2007, virou bairro. Hoje, conta com mais de 47 mil moradores. Um "palmas" vale R$ 1 e só pode ser aceita dentro do bairro - 247 estabelecimentos aceitam transações com a moeda social.  

Em 2006, o Banco Palmas associou-se ao Banco do Brasil e passou a atuar como correspondente bancário - possibilitando a aberturas de contas, transferências e poupança. Em 2010, conectou-se à Caixa Econômica Federal e os moradores puderam receber crédito do Bolsa Família em "palmas". Atualmente, o Banco abre 200 contas por mês e repassa benefícios do programa federal para mais de 2000 famílias. De acordo com o coordenador de crédito do banco, Asier Ansorena, 12 mil pessoas foram atendidas em 2013 e 2000 receberam crédito produtivo.  


Banco Tupinambá (Brasil) 

Moeda: Moqueio





Parte significativa dos 7000 mil habitantes da comunidade Baía do Sol, na Ilha do Mosqueiro, em Belém do Pará, utiliza hoje o moqueio – seja para comprar gás, obter crédito ou pagar a luz. “É um papel moeda normal – com marca de segurança e lastro – que circula internamente para promover o desenvolvimento”, afirma Maria Ivoneide do Vale, coordenadora do Instituto Tupibambá. Segundo Maria, há um comitê local que avalia a liberação de microcrédito e a moeda funciona como uma espécie de cheque. O usuário utiliza o moqueio e o banco faz a troca com o comerciante (em reais). 

Para incentivar o uso, comerciantes oferecem desconto a produtos pagos com moqueio. “Antes do banco, 2% da população comprava no bairro – o restante era fora. Hoje, o dinheiro fica aqui – cerca de 83%. Temos até três panificadoras e frigoríficos”, conta. A difusão do uso moeda foi motivada por prêmios recebidos de empresas. “Antes não conseguíamos ganhar a confiança. Com o prêmio, conseguimos criar um fundo para emprestar crédito e ganhar credibilidade”.

Banco dos Cocais (Brasil)

Moeda: Cocal


Localizada a 250 de Teresina, São João do Arraial movimenta a economia com a moeda social, Cocal  (Foto: Divulgação)
Inaugurado em dezembro de 2007, em São João do Arraial, o Banco dos Cocais é o primeiro banco comunitário do Piauí. Foi aberto com o objetivo de fortalecer a economia local – movimentada principalmente pelo extrativismo de babaçu –, levando acesso financeiro à pessoas de baixa renda. Antes da criação do banco, os moradores precisavam viajar 30 quilômetros até Esperantina para ir a uma agência bancária. “O diferencial de fato de uma moeda própria é o fortalecimento da comunidade, com maior fluxo de compra, estímulo ao artesanato, pequenas lanchonetes e comércio. A moeda se socializou e as pessoas entenderam que quanto mais você investe no comércio local, mais você contribui para o desenvolvimento do município”, afirma Mauro Rodrigues, diretor do Banco dos Cocais.
Segundo Rodrigues, cerca de 500 estabelecimentos aceitam transações em cocais – praticamente o número total da cidade. Uma lei da prefeitura permite o pagamento de até 30% do salário de servidores em cocais. Os moradores podem pagar contas de gás e luz – em valor parcial ou total – na moeda social. “Há uma valorização da cidade também. Hoje, você pergunta onde fica São João do Arraial e muita gente sabe por conta do banco”, conta Rodrigues.

Bristol Credit Union (Inglaterra)

Moeda: Bristol Pounds 



“Pessoas não vão ao shopping apenas para comprar. Vão ao shopping para encontrar-se. Com a moeda local, há interações maiores entre as pessoas nas ruas e a vida em comunidade fica mais intensa”, afirmou o empreendedor Chris Sunderland em um vídeo promocional da Bristol Pounds. Em 2012, ele liderou o lançamento de notas de dinheiro específicas que só poderiam ser trocadas na área metropolitana da cidade de Bristol. O objetivo deles não era concorrer com a libra esterlina, mas criar uma economia local mais “feliz e conectada”. A Bristol Pound hoje é uma empresa sem fins lucrativos que controla o Bristol Credit Union – onde as pessoas podem abrir contas e fazer transações financeiras. 1 Bristol Pounds vale 1 libra esterlina e pode ser utilizado em centros comerciais e empresas de serviços cadastrados.



Para utilizar a moeda e realizar transações com o celular é preciso ser um membro da Bristol Pound – a pré-condição é morar, trabalhar ou estudar na região (que engloba , Bath & North East Somerset, North Somerset and South Gloucestershire). Segundo o site da empresa, trocar libras esterlinas por bristol pounds – e vice-versa – é gratuito. A empresa também afirma que as transações são seguras porque para cada moeda local que circula em Bristol há uma libra esterlina depositada no banco. O lema dos defensores da moeda local é “Comunidades fortes geram negócios fortes". 

De acordo com o site oficial da moeda, há $80,000 Calgary Dollars circulando em Alberta para transações de compra e venda de mais de 1000 bens e serviços. (Foto: Divulgação)
Calgary (Alberta, Canadá)

Moeda: Calgary Dollars



Em Alberta, a circulação da Calgary Dollars desde 1995 é fruto de uma tentativa de moradores para apoiar e fortalecer os negócios locais. O dinheiro circula com notas $1, $5, $10, $25, $50 – onde 1 Calgary Dollar vale 1 dólar. De acordo com o site oficial da moeda, há US$ 80.000 Calgary Dollars circulando na cidade para transações de compra e venda de mais de 1000 bens e serviços. Para conseguir as primeiras notas, é preciso fazer um cadastro no site oficial da moeda. Quando o registro for completado, o interessado irá receber US$ 20 Calgary Dollars para gastar. Para tornar-se um participante ativo e conseguir mais dinheiro é preciso vender um produto ou serviço (a ser realizado na cidade) no Calgary Dollars Market – uma lista que reúne pessoas e estabelecimentos que utilizam a moeda local.




Moradores da Philadelphia, nos Estados Unidos, trocam Equal Dollars (Foto: Divulgação)
Filadélfia (Pensilvânia, Estados Unidos)

Moeda: Equal Dollars Community 



Fundado pelo Resources for Human Development in 1995, a Equal Dollars CommunityCurrency tem por objetivo empoderar e enriquece a comunidade local dando valor a ativos não utilizados ou subvalorizados nos Estados Unidos. É um sistema monetário de escambo: quem fizer parte da comunidade pode oferecer bens e serviços em troca de Equal Dollars – que vem em notas de 1, 5, 10 e 20. Uma feira de alimentos é organizada toda semana para estimular a troca da moeda – em descontos ou mantimentos.   “O dólar americano é bom, mas nós sentimos falta de algo que faça as pessoas trabalharem umas pelas outras e todas pela comunidade, que estimule a troca de bens ou serviços entre as pessoas da comunidade – em uma grande economia isso é mais complicado”, afirmou Bob FIshman, presidente da RHD em entrevista à CNN. 

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